Referenciais em Mecânica:
(de Ptolomeu a
Einstein)
Este
artigo
é direcionado
aos estudantes de nível médio que já
conheceram os
trabalhos de Galileu Galilei e a Mecânica de Newton.
A ideia do referencial
a percepção do movimento vem intimamente
relacionada a
mudanças de posição
e um transcurso de tempo.
Sem mudanças de posição ou transcurso
de tempo
não haveria movimento e, embora isso possa parecer bastante
óbvio para a maioria das pessoas, o estabelecimento de
posições e a própria ideia de tempo
são
coisas bastante sofisticadas para requerer
atenção muito
especial de qualquer um que pretenda interpretar os fenômenos
físicos.
A escolha de referenciais confiáveis produziu as
diferentes
mecânicas de Ptolomeu, Copérnico, Galileu e Newton
ou
Einstein. Na verdade, o referencial é o princípio
obrigatório de todo e qualquer modêlo de
interpretação do Universo que possa ter algum
sucesso.
Os bons alunos de cinemática cedo percebem que a escolha do
referencial correto é, muitas vezes, a diferença
entre
acertar ou errar um exercício.
Como regra geral consideram-se "bons" todos os referenciais em que as
leis físicas são covariantes,
isto é, possuem a mesma
forma.
Para a
mecânica de Galileu/Newton esses são os
referenciais inerciais.
Vale dizer que as ideias de Newton possuem uma maravilhosa e
notável solidez nos domínios em que se aplica (o
das
velocidade muito menores que a da luz) e produz resultados de uma
tão rigorosa precisão que as fórmulas
de
Lorentz/Einstein quando aplicadas a essas velocidades reduzem-se
às equações de Newton.
A medida da precessão do periélio de
Mercúrio
é considerada uma das mais irrefutáveis provas da
validade da relatividade geral. O planeta mercúrio possui
uma
órbita que tem a maior excentricidade entre as
órbitas
dos planetas do sistema solar. Isso quer dizer que possui a
órbita mais elíptica do sistema.
Sob a influência das gravidades do Sol e dos demais planetas
o
seu periélio (ponto mais próximo do Sol)
não
permanece no mesmo lugar, mas apresenta um avanço.
O cálculo dessa precessão feito com a
mecânica de Newton apresenta
uma
discrepância (em relação ao
observado)
de 43" de arco em 100
anos, ou de
0,43" de arco por ano!!!
O fator
de correção introduzido
pela
relatividade geral somado
às
equações de Newton
corrige, quase
exatamente, esse valor (0,429).
Ao mesmo tempo em que valida a TRG, isso mostra a pujança e
a
solidez da mecânica de Newton.
O
referencial
aristotélico de Ptolomeu
Aristóteles, o filósofo grego que viveu entre
384a.C. e
322a.C, foi discípulo de Platão e preceptor de
Alexandre,
o Grande. Aristóles foi matemático, fisico,
geômetra, naturalista e escreveu tratados sobre poesia e
drama.
Aristóteles participava das ideias cosmológicas
de seu
mestre e considerava a esfera celeste como uma estrutura
rígida
na qual estavam fixadas as estrelas, tendo ao centro a Terra,
imóvel, ao redor da qual tudo o mais orbitava.
Essa era a cosmologia difundida na antiguidade. Nesse modelo a Terra
era o referencial por excelência, a partir do qual eram
interpretados os movimentos.
Ptolomeu foi um sábio grego que viveu por volta do primeiro
século da era cristã e trabalhou em Alexandria
onde
desenvolveu trabalhos em geografia, cartografia, astronomia,
matemática, ótica e teoria musical.
"A
sua obra mais conhecida é o
Almagesto (que significa "O grande tratado"), um tratado de astronomia.
Esta obra, a síntese dos trabalhos e
observações
de Aristóteles, Hiparco, Posidônio e outros,
é uma
das mais importantes e influentes da Antiguidade Clássica,
são treze volumes com tabelas de
observações de
estrelas e planetas e com um grande modelo geométrico do
sistema
solar, baseado na cosmologia aristotélica. Nela
está
descrito todo o conhecimento astronómico
babilónico e
grego e nela se basearam as astronomias árabes, indianas e
europeias até o aparecimento da teoria
heliocêntrica de
Copérnico. No Almagesto, Ptolomeu apresenta um sistema
cosmológico geocêntrico, isto é a Terra
está
no centro do Universo e os outros corpos celestes, planetas e estrelas,
descrevem órbitas ao seu redor. Estas órbitas
eram
relativamente complicadas resultando de um sistema de epiciclos, ou
seja círculos com centro em outros círculos."
(wikipédia)
o movimento dos planetas visto da Terra apresenta-se complicado,
exibindo
avanços e recuos e realizando voltas chamadas epiciclos.
Após
o advento da era cristã a
influência de Aristóteles permaneceu muito grande
e o
geocentrismo foi visto pela igreja romana como de acordo com a teologia
que colocava o Homem como ápice e centro da
criação divina.
Cumpre dizer que o modêlo de Ptolomeu, fruto de
observações e medidas astronômicas
feitas a olho
nú, explicava e previa satisfatoriamente o movimento dos
corpos
celestes.
Surge
um novo referencial
Por volta de 1537 d.C., Nicolau Copérnico, nascido na
região onde hoje é a Polônia, reviu o
referencial
geocêntrico, mostrando que se admitido que o Sol fosse o
centro
do sistema solar os movimentos dos planetas seriam explicados por
órbitas circulares muito mais simples. Seu livro De
revolutionibus
orbium coelestium ("Da
revolução de esferas
celestes") foi publicado em 1543, ano de sua morte.
o
modelo heliocêntrico
Apesar
de muito difundido, seu livro não causou grande impacto na
época. Em 1599 o astrônomo
dinamarquês Tycho
Bhrae muda-se para Praga e Johannes Kepler passa a trabalhar como seu
assistente. Vivia-se então o período do
Renascimento que
revolucionou o pensamento medieval.
As observações muito precisas de Tycho a um
só
tempo confirmaram as hipóteses heliocentristas de
Copérnico e corrigiram seus erros. Mais tarde,
após sua
morte, Kepler trabalhando com
seus registros elabora suas tres leis que constituem
situações "ad reductio"
da gravitação de Newton assim como é
esta em
relação à TRG de Einstein.
Essa grande transição que revolucionou a
astronomia e a
física é resultado, exclusivamente, da escolha de
referenciais. Desta vez, como em muitas outras circunstâncias
da
história da física, o modêlo mais
simples é
que se acaba por provar mais consistente com a realidade.
Com Tycho Bhrae, Kepler, Galileu e Newton, gradativamente a
matemática se estabelece como ferramenta
indispensável,
capaz de modelar e descrever qualitativa e quantitativamente os
fenômenos e efetuar previsões capazes de orientar
observações experimentais que podem confirmar ou
derrubar
o
modelo. Hoje é impensável estudar
física sem uma
sólida base matemática.
Porque
o referencial
é tão importante em
física?
as
diferenças descritivas do movimento dos corpos celestes
entre a interpretação sistematizada por Ptolomeu
e a mecânica celeste de Copérnico já
mostram claramente essa importância. Um dos pontos mais bem
estabelecidos pelos cientistas é que as leis
físicas devem ser sempre as mesmas, não
importando o lugar ou tempo, ou o ponto de vista do observador.
Já mencionamos isso anteriormente de uma maneira mais
extensa quando falamos que espera-se que as leis físicas
sejam covariantes, ou, além de serem as mesmas, com mesmos
resultados finais, devem possuir a mesma forma.
Galileu e Newton já sabiam que há uma classe de
referenciais que criam situações "misteriosas".
Esses são os referenciais em rotação.
A
pedra da funda
a funda é uma das mais antigas armas de caça,
usada também em guerras, de que se tem notícia.
Uma das passagens da Bíblia conta como o pastor Davi acertou
com sua funda o gigante filisteu Golias, vencendo-o. Constitue de uma
tira fina de couro ou corda fina em cujo meio há um pequeno
retângulo de couro onde pode-se prender uma pequena pedra.
Com
as duas pontas seguras na mão faz-se a pedra girar e, quando
alcança a velocidade desejada, uma das pontas é
solta liberando a pedra que então sai em movimento
retilíneo de trajetória tangente à
curva que descrevia no ponto de soltura.
Imaginemos que um desses caçadores decidisse girar a funda
num
plano vertical sobre sua cabeça. Imaginemos
também que
pudessemos reduzir nosso tamanho o bastante para nos localizarmos sobre
a pedra que seria, então, o nosso referencial. A
situação é a mesma que experimenta um
garoto que
brinca no gira-gira
quando a funda começasse a girar sentiríamos
imediatamente uma força que parece nos compelir radialmente
para
fora da pedra. Olhamos para o cordão que prende a pedra e o
veríamos em repouso em relação a
nós,
estirado em linha reta. Olhamos para fora e vemos o mundo todo girando
velozmente à nossa volta e nos sentiríamos muito
inclinados a concluir que quando o mundo começa a girar faz
sobre nós uma força centrífuga.
No entanto, se nos deslocássemos agarrados ao
cordão em
direção ao ponto onde ele termina (centro de
rotação do mundo) notariamos que a
força
centrípeta vai sendo reduzida até que ao final
não
mais a sentiremos. O mundo, entretanto, continua girando do mesmo jeito.
Desejando melhorar nosso modelo, diríamos que o mundo, ao
girar,
faz uma força centrífuga sobre os corpos em
repouso que
cresce na razão direta da nossa
posição em
relação ao centro de giro do mundo e somente
poderíamos atribuir a existência da
força a
essa única causa. Nenhuma outra poderia ser identificada.
O importante a ressaltar é que poderíamos fazer
pequenos
experimentos largando pequenos fragmentos da pedra em diferentes
posições ao longo do cordão e, usando
um
dinamômetro, poderíamos calcular a intensidade
dessa
força que teria a forma
em
que x
é a distância ao centro de giro do mundo e k
um valor que
depende da velocidade angular de rotação do
mundo,
sendo kx
uma aceleração, obedecendo a lei de Newton. Na
verdade
descobriríamos que k é igual ao quadrado da
velocidade
angular com que o mundo rotaciona. E teríamos
Nossa teoria justificaria com bons resultados a realidade observada. Na
verdade esse é um ponto de vista com frequência
revisitado
por aqueles que já buscaram uma física
não
newtoniana. O importante é observar que a força
centrífuga parece surgir apenas do ponto de vista de um
observador que se situa em um referencial em
rotação
(para o qual todo o mundo parece girar). Veremos mais adiante que, para
um observador em um referencial inercial (em repouso ou MRU), essa
força não existe.
Forças de
Coriolis
sistemas em rotação quando tomados como
referenciais
apresentam uma boa quantidade de "estranhices" como já vimos
com
Ptolomeu e a pedra da funda. No final do século XVIII e
início do XIX o engenheiro francês Gustave-Gaspard
Coriolis descreveu as
forças que hoje levam seu nome.
Na verdade tanto as forças de Coriolis quanto a
centrífuga são chamadas de
"pseudo-forças" pois
surgem devido à sua observação em um
referencial
não-inercial (rotação). Não
se lhes
consegue identificar um agente causador, nem delas se encontra o par
ação-reação, isto
é, não se
verifica a terceira lei de Newton.
Coriolis descreveu-a como uma força que se manifesta quando
um
corpo se desloca radialmente observado a partir de um sistema em
rotação
o ponto vermelho representa o observador em repouso no sistema em
rotação. Do seu ponto de vista a seta (mostrada
como ele
a vê) descreve uma curva e representa uma massa de ar que se
desloca do pólo para o equador.
Do nosso referencial, inercial utilizando como referência as
margens (horizontal e vertical) da figura acima, veríamos
uma
trajetória em linha reta.
somos habitantes de um sistema em rotação (a
Terra) e alguns fenômenos, pela sua escala e
duração evidenciam os efeitos de Coriolis. Isto
é bem conhecido dos climatologistas. As massas de ar polar
que se deslocam para o equador exibem esses efeitos
as forças inerciais
todo estudante que inicia o aprendizado da dinâmica, mais
cedo,
ou mais tarde, se depara com o problema do pêndulo colocado
dentro de um ônibus que tem as janelas vedadas.
O ônibus inicialmente está parado e dentro dele um
passageiro contempla um pêndulo na sua
posição de
repouso. Ao partir o ônibus começa a acelerar, o
passageiro sente suas costas serem comprimidas contra o encosto do
banco e vê o pêndulo inclinar-se para
trás
estando
vedadas as janelas o passageiro não percebe o movimento do
veículo e imagina que alguma força de natureza
desconhecida o pressiona contra o banco e faz inclinar o
pêndulo.
Do ponto de vista de seu referencial acelerado, não
encontrará qualquer explicação para o
fenômeno.
Se, mais adiante, o ônibus entra em um movimento
retilíneo
e uniforme esses efeitos desaparecerão e a força
desconhecida também some tão misteriosamente
quanto
apareceu. Esse é outro tipo de força cuja
existência só pode ser percebida do ponto de vista
de um
referencial acelerado.
Os
referenciais confiáveis
o que foi dito anteriormente revela que a escolha de um referencial
(ponto de vista do observador) é etapa muito importante e
fundamental para o pesquisador de um fenômeno
cinemático,
ou dinâmico, o que é praticamente tudo o que
ocorre no
Universo.
Devemos levar em conta o fato de que as leis físicas
não
devem mudar apenas porque desenhamos um eixo imaginário, ou
escolhemos um ponto de vista. Devemos reconhecer que alguns
referenciais distorcem nossa observação e
verificar se
existem referenciais confiáveis em que as leis da
física
serão, de fato, covariantes.
Se você está numa sala de sua casa, observando o
movimento
das coisas na rua através da janela, mesmo que
não saiba,
está adotando um referencial tridimensional no qual os eixos
podem ser representados pelas intersecções de
tres planos
(duas paredes e o chão).
Será esse um bom referencial?
Se considerarmos as experiências que podemos fazer nessa
sala,
como fazer deslizar objetos em planos inclinados, em queda livre ou no
chão, ou os movimentos de pessoas e automóveis da
rua
verificaremos que as leis de Newton serão todas
válidas e
se apresentarão na forma correta. Poderemos concluir pela
boa
qualidade do referencial.
Porém, se dessa sala, desejarmos observar os movimentos dos
planetas chegaremos às mesmas conclusões de
Ptolomeu e
não às de Copérnico, o que nos
levará a
desacreditar de nosso referencial.
No ônibus de janelas vedadas do exemplo anterior vimos que,
ao
acelerar, o referencial não era bom, pois fazia surgir uma
força fictícia. Mas, se em seguida, o
ônibus
iniciar um movimento retilíneo e uniforme tudo
voltará ao
normal. O pêndulo se estabilizará na vertical,
objetos
largados cairão na vertical e os resultados de qualquer
experiência mostrarão covariância com as
leis de
Newton. Agora o referencial parece bom.